segunda-feira, setembro 04, 2006

4 DE SETEMBRO DE 1976

NOTA: Continua a encontrar-se actualidade no discurso proferido pelo Dr. Álvaro Monjardino na qualidade de Presidente da Assembleia Regional dos Açores, aquando da cerimónia solene de instalação do parlamento da Região. Na mesma cerimónia discursou o então Presidente da República, Ramalho Eanes. Assistiu, igualmente, à cerimónia Mário Soares, Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional. Pela ausência de registo nos arquivos electrónicos da Assembleia Legislativa e como é um documento que, além de encerrar estes momentos de relevo que enquadraram os primórdios da autonomia constitucional, identifica os pais da democracia parlamentar regional, proponho-me deixar, enquanto quem de direito não o fizer em lugar próprio, o registo do Diário da sessão histórica realizada a 4 de Setembro de 1976 na Sociedade Amor da Pátria, na Cidade da Horta.

Presidente:
Vai proceder-se à chamada.
(eram 10 horas)
Procedeu-se à chamada a que responderam os seguintes deputados:

PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO
Adelaide Maria Medina Teles
Agostinho Ramos Pimentel
Alberto Romão Madruga da Costa
Alvarino Manuel de Menezes Pinheiro
Álvaro Pereira da Silva Leal Monjardino
Álvaro Rodrigues Cabral de Melo
António Frederico Correia Maciel
António Gentil Lagarto
Carlos Henrique Velho Cabral de Medeiros Bettencourt
Carlos Manuel Cabral Teixeira
David Francisco de Mendonça Santos
Delmar António de Sousa Bizarro
Emanuel Francisco de Botequilla e Silva
Fernando Dutra de Sousa
Francisco Martins Nunes Gonçalves
João Manuel Simões Paulino
João Vasco da Luz Botelho Paiva
José Adriano de Borges carvalho
José Altino Melo
José Arlindo Armas Trigueiro
José Mendes Melo Alves
José Pacheco de Almeida
José Renato Medina Moura
Liberal Faria Correia
Manuel Costa Melo
Manuel Pereira Furtado
Maria Fátima de Silva Oliveira


PARTIDO SOCIALISTA
Angelino de Almeida Páscoa
António Pimentel Emílio
Félix Augusto Pereira Martins
Francisco Cardoso Pereira de Oliveira
João Luís Tavares de Medeiros
José António Martins Goulart
José Manuel da Costa Bettencourt
Manuel Emílio Porto
Manuel Fernando da Silva
Maria da Conceição Bettencourt de Medeiros
Maria das Mercês da Cunha Albuquerque Coelho
Maria Suzette de Andrade Mendonça
Roberto de Sousa da Rocha Amaral
Silvano Neves Pereira

CENTRO DEMOCRÁTICO SOCIAL
António Albuquerque Jácome Correia
Rogério da Silva Contente

Presidente:
Estão presentes 41 deputados. Pode entrar o público. Está aberta a sessão.
Como é do nosso conhecimento, e nestas contingências do tempo, o Senhor Presidente da República deve chegar à ilha do Faial cerca das onze horas. Sabemos que o avião Presidencial saiu de Lisboa por volta das 10. É natural que haja algum pequeno desfasamento mas em qualquer caso, em princípio, o horário deverá ser cumprido. Nestes termos, vai ficar suspensa a sessão, para continuar ao meio-dia. Quando o Senhor Presidente e a sua comitiva aqui chegarem, e como a sessão vai ter um cunho solene, desde já marco a próxima sessão para segunda-feira próxima, pelas 15 horas, para apreciação da última parte da ordem do dia, aquela que estava marcada a título eventual, dependente de uma condição que já se verificou, portanto foi apresentada, o projecto de estrutura do Governo Regional. Pedia também a atenção dos senhores deputados para o facto de que, tão depressa termine a sessão, o Senhor Presidente da República se dirigirá para aquele jardim de Inverno onde receberá os cumprimentos dos Deputados. E agradecia que cada um dos Senhores Deputados se apresentasse à medida que chegasse junto do Senhor Presidente. Muito obrigado e até já.
(Eram 10 horas e 10 minutos)

Presidente: Em nome do Senhor Presidente da República, está reaberta a Sessão.
(Eram 16 horas e 10 minutos)
Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhor Representante do Conselho da Revolução
Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhores Deputados Regionais
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Pela primeira vez na sua História, a Região dos Açores, considerada como tal e através do seu órgão representativo, a Assembleia Regional, recebe o Presidente da República, a quem desde já saudamos como o escolhido pela grande maioria dos Portugueses para símbolo e garantia da unidade de Portugal.
Entendeu V. Ex.ª sublinhar esta presença com a comparência de representantes dos demais Órgãos de Soberania que aqui vemos, e aquém nos cumpre também saudar.
Na assembleia da República saudamos a legítima representação de todos os Portugueses, através das suas mais significativas correntes de pensamento político consagradas pelo voto livre. E o primado da Lei, como expressão da vontade do Povo – nunca mais fruto de autocracias paternalistas ou totalitárias, que hipóteses, em poder solitário, temeroso, censório e repressivo.
No Governo, pela pessoa do seu Primeiro-Ministro, saudamos o Executivo emergente da tendência política com maior expressão nos resultados eleitorais, e com ele a determinação, a coragem e o patriotismo de aceitar gerir um país em crise de identidade e de sobrevivência.
No Conselho da Revolução saudamos o dinamismo do Movimento do 25 de Abril que, fechando um livro da História Portuguesa, lhe abriu um outro e, cortando o nó górdio de uma guerra sem saída, traçou, no meio de convulsões, um novo rumo à via de Portugal, orientado aberta e simultaneamente para a democracia política e para a democracia económica.
Nos Tribunais, pelo seu órgão supremo, saudamos os árbitros respeitados dos litígios que garantem a concretização da lei no complexo dia a dia das relações humanas, com os seus choques de interesses e de paixões.
São saudações conscientes nesta época conturbada em que se estabilizaram as instituições politicas e constitucionais, numa sociedade estonteada pelo gosto recente de novos consumos, mas no meio da qual se avolumam interrogações e dúvidas caladas, e começam a explodir os descontentamentos perante as privações que já se sentem, os traumatismos que se sofreram e as injustiças que foram cometidas.
Época conturbada pelas mutações havidas, pelas conquistas revolucionárias que se fizeram e pelo solavanco imenso que foi a mudança de rumo no nosso devir histórico, todo orientado, em três quartos de século, segundo uma linha que agora se quebrou.
O Partido Republicano Português nasceu há cem anos, e cresceu no meio do ranger de dentes que provocou o ultimatum de 1890. O Hino, que depois foi nacional, era uma «Marselhesa» nostálgica de glórias e colonial no seu sentido. A Bandeira da República assentou as quinas de Portugal sobre uma esfera armilar, símbolo manuelino de uma era imperial. A grande difusão dos «Lusíadas» veio com a República, e com ela vieram os textos escolares por que a nossa geração ainda estudou, todos eles imbuídos de civismo laico e de uma ideia de Pátria extremamente ligados à grandeza histórica e territorial.
Foi este imenso potencial nacionalista armazenado pela primeira república que o denominado Estado Novo aproveitou, influiu e acabou por petrificar, envolvendo-o em fórmulas jurídicas e, sobretudo, sacrificando-lhe as Liberdades em nome da nossa regeneração económica eu ao cabo de cinquenta anos ainda nos matem na última linha dos países da Europa.
Com o processo iniciado em 25 de Abril de 1974 tudo isto foi ruindo.
Porque tudo foi ruindo, ruiu a petrificação nacionalista.
É, ao mesmo tempo, com a infiltração sectária de novos profetas e pretensos detentores dos segredos da felicidade social, se regeneram expressamente os cinco séculos de História aos quais Portugal devia o seu contributo maior para a civilização a que pertencemos.
O que ficou?
Ficou um Povo que continua a ter uma História, uma Língua e uma Cultura
Ficaram ruínas económicas e humanas no meio das quais alguns até pensam escutar as violas de Alcácer Quibir.
Ficou um país velho e pobre, atónito, hesitante e duvidoso de si mesmo. Atingido nas suas mais fundas reservas morais e positivamente incapaz de pensar em termos de messianismo ou de missão planetária.
Isto, por um lado, parece excluir a possibilidade de regresso a ideologias e a mitologias sobre as quais se ergueram os fascismos ao jeito dos anos trinta.
Mas, por outro lado, não exclui em conjugação com a crise económica e uma evidente falta de motivação próprias, o risco de governos tirânicos, de direita ou de esquerda, uns ou outros primariamente maquiavélicos, uns ou outros pretensamente inspirados, uns ou outros agressivos e brutais, que usem de mão férrea para manter uma aparência de substracto económico, a competência técnica e científica e uma vontade colectiva de ser afirmar como tal.
E é neste cruzar de fogos que já faísca num céu pesado e escuro que aparece, a afirmar-se como autónoma dentro do todo português, a Região dos Açores.
Sentimo-lo e dizemo-lo Senhor Presidente. Hoje, mais do que nunca, Portugal precisa dos Açores.
Mas precisa deles como?
Como mera possessão territorial?
Ou antes como uma comunidade humana implantada a partir de nove ilhas, das quais tem irradiado e continua a irradiar para o resto do Mundo?
É evidente que o primeiro termo desta alternativa não interessa ao Povo dos Açores.
Parece também claro que é o segundo termo que Portugal pretende. Outra coisa não resulta do texto constitucional das recentes palavras de V. Ex.ª na posse do Senhor Ministro da República e de asserções explícitas no programa do Governo Português. Outra coisa não resulta, acompanhado dos representantes dos Órgãos da Soberania na abertura solene dos trabalhos da nossa Assembleia Regional.
E uma Assembleia quase toda composta de gente nova na idade e modesta na condição social. E totalmente formada por pessoas que vivem do seu trabalho profissional.
Julgamos que ela espelha, com muito razoável fidelidade, o que o nosso Povo pensa e quer, na sua profunda vocação igualitária e democrática que – ao contrário do que julgam e dizem alguns ignorantes da História e Geografia Humana – pede meças, neste campo, a qualquer outra Região do Portugal.
Para nós, Açorianos, o voto é um meio normal de expressão, a liberdade crítica uma constante e tradição cooperativista uma realidade com várias décadas de existência. Só que temos um ritmo que é nosso, do qual não abdicamos, por isso mesmo que somos livres, cujo respeito temos o direito de exigir e cuja ofensa sentimos dificuldades em perdoar.
Mas a Comunidade Açoriana não pode ser reduzida aos – cada vez em menor número – residentes nas nove ilhas dos Açores. Ela é primordialmente formada por estes, é certo, mas nunca por estes só.
E, todavia, mormente no que toca aos emigrantes em terra estrangeira, o fundamental dos que saíram saiu sem intenções de regressar para aqui viver.
Como considerá-los então gente muito nossa?
Senhor Presidente por três razões.
A primeira é que grande parte da que aqui ficou já teria ido, se pudessem juntar-se a eles.
A segunda é que são inúmeros e fortíssimos os laços que connosco mantêm e que, à nossa maneira – até na crítica desinibida e directa – os afirmam como Portugueses de origem e como Açorianos reais.
A terceira é que conservam aquela sensibilidade e aquele pundonor próprios dos ilhéus, e por isso justamente se magoam quando cupidamente olhados e referidos como fontes de divisas e de incertos investimentos futuros – eles que deixaram a sua terra para fugirem à fome, à incultura ou à mediocridade a que nela se viam votados -.
Como se magoam quando tratados de reaccionários por quem nunca soube senão por algum catecismo rudimentar, o que seria um Estado do direito, uma democracia vivida e esquemas actuantes de segurança social.
E todo este Povo, altivo na sua modéstia, brioso na sua humildade, sensível na sua capacidade de sofrer, trabalhador no seu «spleen» português, no seu açorianismo, que esperamos ver reconhecido, actuante, dinamizado, através da aceitação expressa da sua vera identidade regional.
Foi essa identidade que procurou afirmar-se nos movimentos autonomistas vindos do século passado, e que só agora reputamos consagrada através da Constituição, que o voto dos Portugueses legitimou.
É essa identidade que esperamos ver respeitada e engrandecida pelos órgãos do Poder Central, na observância das garantias constitucionais dadas à Região, no cumprimento dos deveres políticos, financeiros, técnicos e económicos, perante ela assumidos dentro de um programa coerente de regionalização progressiva dos órgãos periféricos do Estado, em consonância com as capacidades existentes e a desenvolver, dos que são açorianos por residência, por nascimento, por necessidade ou por amor.
Sabemos o que somos e como somos.
O que valemos e o que nos limita.
É habitual não constarmos do livro da História Pátria. Mas estamos marcados na História Universal.
Parcela mais salgada de Portugal batida de mares e de ventos, de antigos e de novos piratas, seremos chamados uma vez mais, como há quatro séculos, como a século e meio, como em Novembro último, a mostrar até um caminho possível aos restantes Portugueses.
Só que por tudo isso não podemos ser considerados objectos seja do que for, interna ou internacionalmente, porque nos afirmamos pessoas – no singular e no colectivo – porque somos uma parte viva e sã de uma velha Nação com ela solidários em ambos os sentidos, sobretudo na hora dramática que vivemos.
Caminhos novos se abrem ao Povo Português. Caminhos novos num Mundo em rápida transformação.
Nesta primeira experiência do poder regional, só possível e viável graças à restauração da democracia, não temos a pretensão de ensinar nada a ninguém. Mas temos o direito de aprender com o nosso esforço e o nosso desejo de servir.
Em busca de uma verdade esquiva, nos limites da dúvida, na coragem do escolher, no risco de errar, em contacto com o Povo, que nos elegeu, dando-nos uma nesga da sua confiança e reservando-nos muito do seu cepticismo, com a razão que lhe advém de tantos anos de promessas incumpridas, de oportunidades falhadas de esperanças que fugiram e de futuros que se perderam.
Seja como for é aqui, nesta Assembleia, que o nosso Povo terá a sua primeira e mais legítima voz: para decidir o que puder, exigir o que não estiver ao seu alcance, e lembrar de uma vez para sempre a que detiver as rédeas do mando, nacional ou regional, que está ao serviço das comunidades por contas das quais agirá e enquanto e como essas comunidades o quiserem.
Desta nova experiência política não vemos Senhor Presidente, que saia diminuída a unidade nacional, aquilo que tem de verdadeiro e legítimo.
Vemos sim, e desejamo-lo, que saia comprometida, condenada e finalmente banida a suficiência medíocre de um centralismo obsoleto – que para muitos infelizmente é ainda estrutural – responsável pela evidência que é esta terrível e muda acusação: a dos que, silenciosamente, continuam a deixar a sua terra em busca de uma vida melhor.
É ainda pesando nestes, que serão os nossos mais rigorosos juízes, que a Assembleia Regional dos Açores, perante o Presidente de Portugal, perante o Povo que a elegeu, se compromete a honrar o mandato recebido dos Açorianos, exercendo-o com o espírito de serviço e com independência moral.
É também com este espírito e com essa independência que agradecemos a V. Ex.ª Senhor Presidente, a sua presença neste acto numa hora como é esta para uma Terra e para um Povo que há tantos anos merecem uma porta real, e não fictícia, para um futuro humano e digno de se viver.
(Salva de palmas)